POEMA DE ABERTURA

  • EIS UMA VERDADE DE PRIMEIRA INSTÂNCIA: A CRIANÇA VIVE EM ESTADO DE POESIA, O POETA VIVE EM ESTADO DE INFÂNCIA. Carlos Vazconcelos

27 de jan. de 2012

LEITORES


Esta semana ganhei alguns presentes feitos de palavras. E dos mais comoventes e gratificantes foram os que abaixo transcrevo:

Mundo dos Vivos
(Autor: Silas Façanha)

No livro, nos textos
Um lugar de conflitos
Os mais perversos segredos
O mundo dos vivos

Livro crônica
Com vários elos
Na escrita harmônica
De Carlos Roberto Vazconcelos

Demonstra nos textos
Com um jeito profundo
O amor, o terror
No nosso mundo

Parabéns pelo livro
Parabéns pelo trabalho
Sinceramente eu digo:
Estou encantado
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“Prezado Carlos Roberto: acabo de ler embevecido o livro de sua autoria Mundo dos Vivos/contos. De quando em quando, sou surpreendido aqui no Ceará pelo lançamento de obras literárias do mais elevado nível. A ponto de levarem a esta reflexão – a de que se tais textos fossem publicados por exemplo em São Paulo, por editora de prestígio, os autores se afirmariam como nomes nacionais: o caso de um Marcos Frota. Agora, o caso desse Amigo. Sua obra nasceu da convergência do sociólogo, do psicólogo e do mestre no domínio da palavra, surgindo dessa liga livro realmente fascinante. Vá em frente. Continue administrando o talento, em vez de, como aquela figura bíblica, enterrá-lo; antes, pondo-o a serviço dos leitores, expressão tangível da sociedade. Parafraseando João Paulo II, sobre todo talento pesa uma hipoteca social.

Cordialmente, Pádua Ramos”*
___________________
O poema é do pequeno-grande Silas Façanha, depois de atenta leitura do livro Mundo dos vivos.


Silas Façanha é um garoto de 12 anos, ávido leitor e contumaz operário das letras, que passou a frequentar recentemente o Abraço Literário. Esse menino vai longe, pois escreve, recita e cultiva uma paixão espontânea pela Literatura. Viajou conosco para Ipu (sob responsabilidade dos pais), quando participou do I Encontro Cearense de Escritores, promovido pelo SESC, AILCA e ACE. Assistiu ponderadamente a todas as palestras, recitou versos e deu depoimento. Dentro do ônibus, já de volta, pedi que criasse coragem e lesse para mim o poema inspirado no livro.

O outro regalo veio da parte do Dr. Pádua Ramos, com quem trabalhei de Redator na FIEC pelos idos da década de 1990. Entreguei-lhe o livro há cerca de 2 anos, quando o encontrei na rua. Que grata surpresa a minha quando recebi um telefonema e depois um e-mail com algumas considerações sobre o livro Mundo dos vivos. No momento da ligação, não nos lembrávamos um do outro. Com o decorrer da conversa, foi mais grata ainda a surpresa quando descobri que aquele que se dava ao trabalho de me ligar para comentar meu livro era o Sr. Pádua Ramos, uma das pessoas mais importantes na minha trajetória de vida, grande leitor, dessas pessoas que a gente não esquece pela força do caráter, da inteligência e da cordialidade.

As palavras que ora compartilho neste blogue (e peço desde já a licença de ambos os amigos) me deixam feliz e, por outro lado, só reiteram meu compromisso com a Literatura e com o ato de escrever, hábito que me acompanha desde tenra idade. Não vai aqui nenhuma afetação, apenas um contentamento pessoal e, por oportuno, minha justa homenagem aos dois companheiros de jornada terrena.

*Professor da UECE, ex-Superintendente Geral da FIEC, ex-Secretário do Planejamento (Ceará e Piauí).

20 de jan. de 2012

ERA UMA VEZ NO OESTE

O diretor Sérgio Leone, o rude olhar de Charles Bronson, a beleza estonteante de Claudia Cardinale

Por Carlos Vazconcelos

Três sujeitos carrancudos se apossam da erma estação de Flagstone. Há um encontro marcado. A espera se desenrola por longos catorze minutos em que se ouve uma sinfonia de sons triviais, espécie de trilha sonora a embalar o tédio dos intrusos: o moinho a ranger com lentidão, uma goteira sobre o chapéu, o estalar de dedos, o zumbido intermitente de uma mosca.


Quando o trem estaciona não desce ninguém. A parada é rápida e o apito ecoa novamente anunciando a despedida do cavalo de ferro. Os três comparsas ensaiam dar meia-volta, mas param perplexos ao escutarem um som de gaita. Essa toada sempre prenunciará o tom soturno da morte. Por trás da gaita um homem de olhar lancinante.


“Trouxe um cavalo para mim?”


(Risos) “Parece que falta um cavalo.”


“Não. Trouxeram dois a mais."


Assim começa o maior faroeste de todos os tempos, capaz de deleitar qualquer espectador: Era uma vez no Oeste, dirigido por Sérgio Leone, com música de Ennio Morricone, estrelado por Henry Fonda, Charles Bronson, Cláudia Cardinale e Jason Robards. Filme silencioso, com poucos mas inteligentes diálogos. Não há palavrórios nem tiros ao vento. Toda bala deverá ter um endereço. Os closes das fisionomias e a amplitude das belas paisagens se alternam, mostrando que tanto nos escaninhos das faces quanto nas sinuosidades dos caminhos estão escritas muitas histórias.


No final dos anos 1960, o gênero faroeste entrava em decadência. Leone estourara as bilheterias com o sucesso do chamado Cinema Spaghetti, principalmente na famosa Trilogia dos Dólares: Por um punhado de dólares, Por uns dólares a mais e Três homens em conflito (ou O bom, o mau e o feio), que revelara o grande Clint Eastwood (“Eu gosto de Clint Eastwood porque ele só tem duas expressões faciais: uma com o chapéu e outra sem ele.” – brincou certa vez Sérgio Leone). O diretor italiano preparava seu novo e ambicioso projeto. Tratava-se de Era uma vez na América, saga italiana sobre a máfia, outra obra-prima do cinema italiano. Mas a Paramont fez uma imposição: só arcaria com os custos do novo filme de Leone se este prometesse que produziria antes outro faroeste. Leone aceitou e provou que uma obra-prima pode ser realizada sob encomenda, sem prejuízo para a arte. Era uma vez no Oeste é de 1968. Era uma vez na América ficou congelado até 1984. Leone sempre quis provar que o gênero faroeste não é apenas entretenimento.


Os quatro atores principais estão impecáveis em seus papéis e cada um singulariza com traços fortes seu personagem. Henry Fonda é o inescrupuloso bandido Frank. Até então, Fonda só interpretara mocinhos, e esta é uma das surpresas do filme. Seu primeiro close é de perfil. Fã nenhum poderia acreditar. O surpreendente Leone faz girar a câmera e revela para o espectador (sem dúvida extasiado) os olhos azuis de Fonda, a boca cheia de fumo, um meio sorriso cínico. Isso depois de haver exterminado uma família inteira, inclusive o pequeno Timmy, que saiu do casarão assustado com a chacina, mas não poderia permanecer vivo porque um dos comparsas deu com a língua nos dentes:


“O que vamos fazer com ele, Frank?”


“Já que falou meu nome...” (Uma cusparada e... bangue!)


Tudo isso sob uma bonita e angustiante melodia de Morricone.


Charles Bronson é o mais misterioso dos personagens. Aparece na sombra e maneja dois instrumentos com igual frieza e talento: uma gaita e uma colt. É descendente de índios, impassível como uma pedra e passa a ser chamado “O Gaita” (ou “Harmônica”, e cuja interpretação inicialmente deveria ser de Clint Eastwood).


Jason Robards interpreta Cheyenne, tipo de vilão romântico, e faz contraponto com a solidez inarredável do Gaita. Entra na briga quando descobre que a quadrilha do impiedoso Frank está cometendo atrocidades e espalhando vestígios falsos, para culpar seu bando e pôr a polícia nos seus encalços.


Cláudia Cardinale é a bela prostituta Jill, que resolve sair do luxo de Nova Orleans para se casar com McBain, um visionário irlandês, homem bem-intencionado, cuja mente viaja mais depressa do que o progresso e projeta no futuro sua fortuna. Pela primeira vez, num faroeste, Leone dá relevo a uma personagem feminina, peça fundamental no conflito. Movidos por interesses distintos, Cheyenne e Gaita “assinam” um acordo tácito para destruir a vilania de Frank e sua tenebrosa malta. Frank “trabalha” para Morton (Gabriele Ferzetti), um homem ganancioso, que mal consegue se manter de pé devido a uma doença nos ossos, e habita um luxuoso vagão de trem. Mas Frank é muito orgulhoso para receber ordens de um “patrão” aleijado.


Era uma vez no Oeste é o resultado da união primorosa entre direção, atuação, trilha sonora e fotografia. Simplesmente uma aula de narrativa. A cena do duelo final, entrecortada por flashbacks reveladores, com tempo retardado para alimentar o suspense, é notável. Aliás, o duelo tem dupla conotação, pois há simultaneamente ao movimento dos corpos o confronto dos olhares, num jogo de câmeras que permitem closes extremos, exacerbados, como nunca se viu na história do cinema.


Com esta película, Sérgio Leone faz citações intencionais e presta homenagem a outros grandes filmes e diretores: Rastros de ódio e O cavalo de ferro (John Ford), Matar ou morrer (Fred Zinnemann), John Guitar (Nicholas Ray), etc. O filme é um nostálgico aceno de adeus, ao gênero, aos durões, a uma maneira de se produzir cinema, como o faria mais tarde, bem mais tarde, Clint Eastwood com Os imperdoáveis.


Se o filme é “uma dança da morte”, nas palavras do próprio Sérgio Leone, a dança dura, em sua versão completa, quase três horas (Por falar em morte, uma curiosidade: Al Mulock, que interpretou um dos três pistoleiros da cena inicial, suicida-se no set de filmagem).


Obrigatório até para quem pensa que não curte o gênero bangue-bangue, pois ninguém resiste a uma narrativa bem contada. Mas talvez fique a pergunta: e não há nada que o desabone? Como, se tudo no filme é eloquente, épico, grandioso, até mesmo (ou principalmente) os pormenores?

12 de jan. de 2012

LIÇÃO DE LIBERDADE


por Carlos Vazconcelos


Um amigo me contou que seu pai, ao vir passar uns dias com ele na capital, comentou mais ou menos assim: “Meu filho, eu não gosto daqui porque a vista da gente termina cedo, bate num muro, ou numa casa, parece que quer voltar pra dentro dos olhos. No interior não, tudo é a perder de vista!” O interior de que ele fala é propriamente o campo, nicho primitivo do homem, onde terra e céu parecem dar as mãos, onde as retinas não encontram obstáculos para a sua liberdade.

E foi pensando em liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que a explique, e ninguém que não entenda, como disse Cecília Meireles, que compreendi perfeitamente a queixa do pai do meu amigo. A liberdade começa pela vista, ou melhor, pelo alcance da vista. É por isso que amamos o mar. Mar é sinônimo de liberdade, é antítese de limite. Uma vez à beira-mar, já nos sentimos viajantes. O segredo é levantar os olhos. Antigos marinheiros, mui amantes da liberdade, inconformados com o infinito, achando pouco o imensurável, atiraram-se por oceanos nunca dantes navegados e foram além da Taprobana ou do Bojador. Para eles, liberdade e felicidade eram mais do que uma rima. Estava criada a expressão além-mar.

Comparo cidade sem mar com casa sem quintal. Limita os movimentos, suscita a claustrofobia. Toda cidade deveria possuir pelo menos muitas praças e, se possível, um bosque. Tudo isso traduzido chama-se liberdade, muito embora liberdade não seja apenas isso.

Nas décadas de 1960 e 1970, filmes de faroeste faziam grande sucesso. Homens montados em cavalos viviam as mais bravas aventuras, soltos pelas pradarias, montanhas e vales, sempre a divisar um rio valente ou uma planície sem fim.

Por que razão tais películas exerciam tão mágico efeito sobre os espectadores? Acredito que um dos motivos era exatamente a tal liberdade. Já observaram como a paisagem do Velho Oeste é ampla? Quem não gostaria de estar na pele do herói, solitário ou não, a varar o mundo sem preocupação com horário, tempo bom ou ruim? Mesmo sabendo que nem tudo é bonança na vida do caubói, o público se identifica com a sua liberdade. O caubói é o sujeito mais livre do mundo e só tem na vida três compromissos: manter-se vivo, municiar sua arma e alimentar seu cavalo. O resto vem de sobeja: algumas belas mulheres, o frescor do riacho de águas límpidas, um novo sol a cada dia e, principalmente, a paisagem infinita a perder de vista.

Já escafandristas e astronautas não me remetem à liberdade. São monitorados, controlados, assistidos e dependem de indumentária complicada. Para respirar necessitam de aparelhos de oxigênio e de alguém que os controle. Na maioria das vezes sua paisagem é monótona e seus movimentos restritos. Não, definitivamente, isso não é liberdade. Só a paisagem a perder de vista faz a alma se encontrar.

O homem constrói sacadas, torres e mirantes, inventou binóculos e lunetas, porque entende que a liberdade entra pelos olhos. Decerto descobrirá também que ela só frutifica quando semeada no solo da alma. Quando todo homem aprender essa lição de liberdade, poderá subir aos píncaros dos Andes (como diria Castro Alves) e repetir com Chaplin estas palavras do discurso final de O Grande Ditador:

Levanta os olhos, Hannah! A alma do homem recebeu asas e finalmente começou a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Levanta os olhos, Hannah! Levanta os olhos!

Fortaleza, 2006

5 de jan. de 2012

“Não farás para ti imagem...”

René Magritte, O duplo secreto, 1927
Fomos feitos à imagem e semelhança de Deus?, perguntaram-me a título de provocação. Tenho minhas dúvidas. Para começar, considero-me agnóstico, e como tal, não formularia jamais “uma” imagem de Deus (física ou não). Não tenho imaginação tão fértil. Somos fragmentos do universo, apenas.

O religioso em geral tende a ser antropocentrista. O homem seria o centro do universo, a criação por excelência, digna da atenção minuciosa e irrestrita do Deus Soberano. “Um cabelo que cai é da responsabilidade de Deus.” E é, se tomarmos Deus como o responsável pelo universo avaliado como um sistema complexo, além da nossa compreensão.

Aderir à ideia da semelhança é como criar um espelho. Olho Deus e me vejo ou olho-me e vejo a Deus. É algo narcisista: minha imagem me seduz.

Isto me faz lembrar Costa Matos, poeta cearense. Quanta profundidade nestes versos tão singelos, aparentemente destituídos de beleza, mas tão aplicáveis ao palco, ao púlpito, ao palanque:

A multidão aclamará
Rei
o homem que se apresentar
vestido de espelhos.

Segundo o filósofo Xenófanes (nascido por volta de 570 a. C.), o homem é que criou Deus (ou os deuses) à sua própria imagem e semelhança.

A religião instituída, dogmatizada é a acomodação das ideias. Diferentemente do filósofo ou do cientista, que está sempre sujeito aos abalos sísmicos da dúvida, o religioso alcançou seu porto seguro, adquiriu respostas para todos os problemas e, pior ainda, não tem mais perguntas a formular. Este mundo já lhe foi contado em miúdos, e o outro também.

O ser humano não nasceu com o dom de compreender todas as coisas, mas tem necessariamente a vocação da procura. Ciência é procura. Filosofia é procura. Arte é procura. Só a religião é que é certeza? Quanto mais buscamos respostas mais encontramos mistérios. Definir é reduzir. Por isso Deus não cabe em definições. Eu só consigo percebê-lo como um ser imenso, incognoscível. Kalhil Gibran sabia disso ao afirmar:

Quando um de vós ama, que não diga: “Deus está no meu coração”, mas que diga antes: “Eu estou no coração de Deus”.

Se fomos criados à imagem e semelhança de Deus, não seria Deus egoísta... e invejoso... e falador da vida alheia... características tão pertinentes a esse espectro chamado homem? Ah, mas me diriam: o homem deturpou-se pelo pecado original. Antigamente, eu acreditava no homem como uma criatura a caminho da luz. Mas hoje em dia não é fácil, se olho os escombros ao redor. Uma coisa é certa, não pretendo recair no velho equívoco, o de apregoar o absoluto, pois quem pensa conhecer a verdade absoluta deve estar absolutamente enganado.

Não consigo conceber um Deus que caiba na palma da minha mão, explicadinho, analisado ou antropomórfico. No entanto, respeito a experiência interior do encontro com Deus, sem o contraponto necessário da decifração, porque aí eu pretensiosamente passaria por semideus. Nada deixa de existir por ser incompreensível, registrou Blaise Pascal.

Einstein, que além de cientista era um humanista, e pôs abaixo a premissa obsoleta de que a ciência se opõe à fé, declarou:

Saber que existe algo insondável, sentir a presença de algo profundamente racional, radiantemente belo, algo que compreendemos apenas de forma rudimentar – esta é a experiência que constitui a atitude genuinamente religiosa. Neste sentido, e neste sentido somente, eu pertenço aos homens profundamente religiosos.

A compreensão de Deus requer acima de tudo humildade, para que não saiamos por aí de dedo em riste, a apontar o argueiro no olho do irmão, porque nesta hora sim, precisaremos de espelho para enxergar a trave transpassada em nosso próprio olho.

Contudo, prefiro dizer que entre a avidez dos filósofos, a exatidão dos cientistas, a convicção dos teólogos, fico com a dúvida do poeta:

Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
e sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim, pensar nisso é fechar os olhos,
porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
de todos os filósofos e de todos os poetas.
(Fernando Pessoa)




por Carlos Vazconcelos, março/2006