O dia 28 de setembro foi muito festivo, no SESC Fortaleza. Festa da literatura. O projeto Bazar das Letras recebeu a escritora e professora AÍLA SAMPAIO. Como mediador, tive o privilégio de estar entre duas belas mulheres, a própria Aíla e Lygia Fagundes Telles, uma vez que o livro relançado àquele dia foi Os Fantásticos Mistérios de Lygia (ensaios).
Aíla se sobressaiu em cena, esbanjando a inteligência e o carisma que lhe são tão próprios. Deu um passeio sobre o gênero fantástico, revisitando Machado de Assis, Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares, Julio Cortazar, José J. Veiga, Murilo Rubião e, claro, a autora de Mistérios, Lygia Fagundes Telles.
Também falamos sobre a poesia de Aíla, explorando os livros Amálgama e Desesperadamente Nua, além de textos esparsos, publicados nos blogues. Os escritores Airton Soares e Eudismar Mendes fizeram leitura dramática de alguns poemas da Aíla.
Percebeu-se claramente a satisfação da plateia, e mais uma vez o Bazar das Letras cumpriu sua missão, valorizar o escritor cearense e a literatura brasileira.
PS.: Em outubro O Bazar das Letras receberá o escritor Theófilo Silva, cearense radicado em Brasília, que está vindo especialmente para participar do Bazar das Letras. Theófilo é fundador da Sociedade Shakespeare de Brasília. O bardólatra (como ele mesmo se denomina) relançará seu livro A Paixão Segundo Shakespeare.
Com as batidas na porta foi acordando lentamente do seu torpor. Havia tido sonhos confusos e intermináveis. Ora estava sozinho no mundo, condenado a estranha eternidade, ora fugia de uma legião de seres bizarros.
Uma voz engavetada ressoou seu nome deixando a sobra de um eco longínquo. Antes de abrir os olhos sentia náusea, dor de cabeça e um medo imenso. As pancadas na porta se intensificavam. Já não eram socos, mas chutes e safanões. Cada bordoada era uma porretada no crânio. A voz agora era grave e repetia seu nome ameaçadoramente. Outras vozes bolinavam seus ouvidos como uma tenebrosa música incidental. Um cheiro de bolor comunicava-lhe a recuperação dos sentidos. Só faltava abrir os olhos. Arregalou-os num ímpeto. Por que queriam pôr a porta abaixo? Chutes, socos, ameaças. Nada compreendia. Que crime cometera? Não conseguia mover o corpo. Desejava chegar à porta, destravá-la. Não podia. E percebeu que sua imobilidade exaltava ainda mais os ânimos dos inimigos. Rendido no leito, gotejando de febre e medo, só lhe era possível ver as pontas das próprias botas enlameadas, apontadas para o teto, no meio delas a moldura da porta, prestes a desabar. De repente, a tábua tombou inteira aos pés da cama e uma multidão invadiu seu campo de visão, atirando-se sobre sua carcaça. Bocas furiosas. Pescoços enrijecidos. Dois sujeitos corpulentos arrancaram-no do leito e o levaram.
Tornou a acordar. O ambiente agora era úmido e fétido. Verificou as palmas das mãos com olhos abismados. Mal podia acreditar. Teve visões difusas do seu inferno. Mas ainda não era hora de purgar a alma. Só quando voltou a si definitivamente é que foi recordando... aos poucos... E compreendeu, com assombro, que o pesadelo estava apenas começando.
O povoado do Barrocão era um nadinha perdido nas cordilheiras da Serra da Ibiapaba. Raríssimas casas em quadro e uma pequena capela a ser concluída. Em tudo dependia da Vila Viçosa Real.
Foi assim que, no remoto ano de 1884, Antônio Bezerra de Menezes encontrou o povoado que daria origem à cidade de Tianguá. O respeitável intelectual cearense recebia do governo da província importante missão: percorrer a Zona Norte do Ceará com a finalidade de colher informações sobre as belezas naturais, qualidade dos solos, formações rochosas e outras peculiaridades histórico-geográficas daquela parte do território. A princípio não quis aceitar a incumbência, mas topando o desafio, transformou-o em empresa de valor superior, pois suas anotações foram enfeixadas em forma de livro sob o título Notas de Viagem-Parte Norte (1889), hoje um clássico raro da historiografia cearense.
Em sua peregrinação, registram-se passagens pelas praias do Pecém, Frecheiras, Mundaú e Jericoacoara, em seus estados ainda paradisíacos. Atinge Camocim. Daí em diante a viagem passa a ser realizada em lombo de animal. Prossegue: Granja, Massapê, Santana do Acaraú, Coreaú e Viçosa do Ceará.
Chega ao povoado do Barrocão (hoje Tianguá) e apeia à porta do sr. Manuel Francisco de Aguiar, a figura de maior relevância daqueles tempos naquelas plagas. Faltava o progresso, mas o visitante já podia usufruir da generosidade da terra, da amenidade do clima e da hospitalidade dos nativos. Durante a seca de 1877, narrada em detalhes por Rodolfo Teófilo no livro A Fome (1890), a serra-mãe recebeu os filhos alheios que buscavam refúgio em seu regaço, doando do seu próprio leite, fornecendo-lhes a água e o alimento, mostrando que a natureza é por exceção madrasta, mas acima de tudo é mãe.
Narradores de viagem geralmente são minuciosos em seus relatos, mas nem sempre acertam seus prognósticos. Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Cabral, em carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil, foi categórico ao afirmar: “a terra em si é de muito bons ares”, “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.” Foi um visionário.
Já Henry Koster, outro português, filho de ingleses, ao visitar a Vila de Fortaleza entre 1810 e 1811, afirmou que a “cidade tinha uma certa aparência de prosperidade que talvez não fosse real”. E precipitou-se: “a dificuldade de transporte por terra, a falta de porto seguro, as terríveis e freqüentes secas não permitem esperar que ela atinja nunca a um verdadeiro grau de opulência.” Errou feio. A Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção transformou-se na quinta capital deste país de dimensões continentais.
Parece que Antônio Bezerra era da estirpe de Caminha. Não observava, perscrutava. Sabia que olhar é algo diferente de ver. Um homem por dentro de seu tempo, diagnosticava o presente para vislumbrar o futuro. Ao pisar o solo do povoado onde hoje se localiza a cidade de Tianguá, e ao observar sua gente, afirmou sem medo de se equivocar: “Se tivesse fáceis meios de transportes, este distrito assinalaria sem dúvida a sua proeminência sobre outros pontos mais populosos, porquanto férteis são os seus terrenos e o povo é extremamente laborioso.”
Observe-se que, Antônio Bezerra, tal qual Henry Koster, levou em consideração a deficiência de transportes, apenas não a situou como embargo definitivo contra o progresso. O cearense foi otimista ao afirmar que o distrito do Barrocão assinalaria SEM DÚVIDA a sua proeminência sobre outros, ao passo que o português, incrédulo, declarou que Fortaleza NUNCA atingiria a opulência nos moldes de cidade.
A BR 222, que perpassou mais tarde o território do município de Tianguá, tornou-se realmente um grande vetor do desenvolvimento, artéria por onde saem e entram bens e pessoas. Foi fundamental para o desenvolvimento da cidade
Antônio Bezerra, se vivo fosse, poderia subir novamente aos píncaros dos montes e contemplar uma cidade em plena ascensão.
Já Koster, o estrangeiro, o máximo que poderia fazer era postar-se no alto da Sé, observar os milhares de carros, os barcos e navios ancorados no Mucuripe, os aviões inquietos pelo céu alencarino, arriscar um olhar para a câmera e sorrir amarelo.
Todos dizem que ler é viajar. Isso é fato consumado, mesmo na opinião de quem nada lê. Ler Josué Montello, por exemplo, é transportar-se para o Maranhão. Jorge Amado nos leva à Bahia. Com Machado, retrocedemos ao velho Rio de Janeiro imperial (e às profundezas da alma humana). João Guimarães, Graciliano e Rachel nos conduzem a uma pátria chamada Sertão.
E assim segue o leitor, nas mais variadas e pitorescas aventuras, turismo espiritual. Desse modo, quem tem boa biblioteca possui de saldo uma agência turística virtual, sem os protocolos e a burocracia das convencionais.
Pois estive viajando, esses dias. Li Érico Veríssimo e viajei ao México...
– Ao México, tchê?
Sim, senhor! E de trem. Mas tudo bem, compreendo a estranheza. Quem lê Veríssimo viaja não é para os pampas? E escuta aquela música ao longe (talvez um solo de clarineta), vinda do tempo e do vento, que varre os lírios do campo pelos caminhos cruzados?
Floreios à parte, explicarei melhor. Estou me deleitando com a leitura do livro intitulado México, do escritor gaúcho. É daqueles livros injustamente esquecidos. Como se dizia antigamente, o lado B do long play. São notas de viagem, testemunhos de vida, capítulos de humanidade de um escritor que, ao sentir-se sufocado pela vida diplomática, em Washington, consumido pelo desejo de umas férias, chega em casa e sugere à mulher:
– Vamos ao México?
Esse bem poderia ser o título do livro, pois realmente o convite se estende ao leitor. Qualquer um o aceitará prontamente depois de ler o Prólogo, onde o autor trava um delicioso colóquio com o mestre William Shakespeare em torno das razões que o aliciam a arredar pé da metrópole americana. Lá, tudo funciona direitinho, um modelo de organização, um primor de urbanismo. E sentindo-se um gato preto em campo de neve, desabafa ainda: Sinto saudade da desordem latino-americana, das imagens, sons e cheiros de nosso mundinho em que o relógio é apenas um elemento decorativo e o tempo, assunto de poesia.
Sempre em que se tratar de um grande autor, devemos dispensar um pouco mais de atenção a alguns livros considerados menores. Um grande escritor é multifacetado e dificilmente sua pena admite um rótulo impostor.
Para uma grande pena, não existe literatura amena. Exemplo: na consagrada obra machadiana, não esqueçamos jamais de ler O Alienista.
Com tantas investidas assediantes em torno de Gabriela ou Tieta, alguém se lembrará de ler Terras do Sem-fim, de Jorge Amado, talvez o seu melhor romance?
Da vasta bibliografia de Érico Veríssimo, num cantinho escuso de prateleira, achamos o México, a paisagem do México, o sentimento do México.
Viaje! Não perca tempo! Vá à biblioteca ou livraria mais próxima, solicite seu livro. E quando puder (não desaconselho) solicite também seu passaporte. Você viajará com conhecimento de causa.
Aproveite as palavras veríssimas do mestre Érico: A vida não merece bocejos.