Por Carlos Vazconcelos
O povoado do Barrocão era um nadinha perdido nas cordilheiras da Serra da Ibiapaba. Raríssimas casas em quadro e uma pequena capela a ser concluída. Em tudo dependia da Vila Viçosa Real.
Foi assim que, no remoto ano de 1884, Antônio Bezerra de Menezes encontrou o povoado que daria origem à cidade de Tianguá. O respeitável intelectual cearense recebia do governo da província importante missão: percorrer a Zona Norte do Ceará com a finalidade de colher informações sobre as belezas naturais, qualidade dos solos, formações rochosas e outras peculiaridades histórico-geográficas daquela parte do território. A princípio não quis aceitar a incumbência, mas topando o desafio, transformou-o em empresa de valor superior, pois suas anotações foram enfeixadas em forma de livro sob o título Notas de Viagem-Parte Norte (1889), hoje um clássico raro da historiografia cearense.
Em sua peregrinação, registram-se passagens pelas praias do Pecém, Frecheiras, Mundaú e Jericoacoara, em seus estados ainda paradisíacos. Atinge Camocim. Daí em diante a viagem passa a ser realizada em lombo de animal. Prossegue: Granja, Massapê, Santana do Acaraú, Coreaú e Viçosa do Ceará.
Chega ao povoado do Barrocão (hoje Tianguá) e apeia à porta do sr. Manuel Francisco de Aguiar, a figura de maior relevância daqueles tempos naquelas plagas. Faltava o progresso, mas o visitante já podia usufruir da generosidade da terra, da amenidade do clima e da hospitalidade dos nativos. Durante a seca de 1877, narrada em detalhes por Rodolfo Teófilo no livro A Fome (1890), a serra-mãe recebeu os filhos alheios que buscavam refúgio em seu regaço, doando do seu próprio leite, fornecendo-lhes a água e o alimento, mostrando que a natureza é por exceção madrasta, mas acima de tudo é mãe.
Narradores de viagem geralmente são minuciosos em seus relatos, mas nem sempre acertam seus prognósticos. Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Cabral, em carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil, foi categórico ao afirmar: “a terra em si é de muito bons ares”, “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.” Foi um visionário.
Já Henry Koster, outro português, filho de ingleses, ao visitar a Vila de Fortaleza entre 1810 e 1811, afirmou que a “cidade tinha uma certa aparência de prosperidade que talvez não fosse real”. E precipitou-se: “a dificuldade de transporte por terra, a falta de porto seguro, as terríveis e freqüentes secas não permitem esperar que ela atinja nunca a um verdadeiro grau de opulência.” Errou feio. A Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção transformou-se na quinta capital deste país de dimensões continentais.
Parece que Antônio Bezerra era da estirpe de Caminha. Não observava, perscrutava. Sabia que olhar é algo diferente de ver. Um homem por dentro de seu tempo, diagnosticava o presente para vislumbrar o futuro. Ao pisar o solo do povoado onde hoje se localiza a cidade de Tianguá, e ao observar sua gente, afirmou sem medo de se equivocar: “Se tivesse fáceis meios de transportes, este distrito assinalaria sem dúvida a sua proeminência sobre outros pontos mais populosos, porquanto férteis são os seus terrenos e o povo é extremamente laborioso.”
Observe-se que, Antônio Bezerra, tal qual Henry Koster, levou em consideração a deficiência de transportes, apenas não a situou como embargo definitivo contra o progresso. O cearense foi otimista ao afirmar que o distrito do Barrocão assinalaria SEM DÚVIDA a sua proeminência sobre outros, ao passo que o português, incrédulo, declarou que Fortaleza NUNCA atingiria a opulência nos moldes de cidade.
A BR 222, que perpassou mais tarde o território do município de Tianguá, tornou-se realmente um grande vetor do desenvolvimento, artéria por onde saem e entram bens e pessoas. Foi fundamental para o desenvolvimento da cidade
Antônio Bezerra, se vivo fosse, poderia subir novamente aos píncaros dos montes e contemplar uma cidade em plena ascensão.
Já Koster, o estrangeiro, o máximo que poderia fazer era postar-se no alto da Sé, observar os milhares de carros, os barcos e navios ancorados no Mucuripe, os aviões inquietos pelo céu alencarino, arriscar um olhar para a câmera e sorrir amarelo.