Estou
quase concluindo a leitura de O óbvio
ululante, crônicas memorialísticas de Nelson Rodrigues. O velho escriba era
um gozador. Tinha o poder de desnudar o lado mais torpe da alma humano. Poucos,
na literatura brasileira, além de Machado de Assis, o conseguiram de maneira
translúcida. Implicava com alguns vultos da época, e quando isso acontecia,
era desassossego para a “vítima”, que virava personagem das crônicas
semanais. Implicava, por exemplo, com D. Hélder (a
personalidade mais citada no livro: 38 vezes), com Alceu Amoroso Lima e outros
católicos. Incomodava-se com os doutrinadores, os moralistas, os seres cheios
de certeza. Como não via possibilidade de perfeição no ser humano, observava as
atitudes dos “homens de boa vontade” com desconfiança e sempre ávido por
encontrar goteiras no telhado. Percebe-se frustração quando não as encontra. As referências a João Guimarães Rosa são impagáveis (com a licença da expressão clichê). São passagens em que Nelson dá uma perfeita amostragem de suas próprias contradições, temperadas sempre com fina ironia e tamanho cinismo. Nunca poupou críticas à “esquerda” brasileira, o que lhe rendeu o rótulo de reacionário. Em Nelson, percebe-se nitidamente a diferença entre o homem e o
criador. O segundo não aceitava amarras e apresentava a vida como ela é. O
primeiro tinha moral própria, de homem comum, com seus medos, dúvidas e tabus.
Só não aceitava doutrinadores. É o rei da frase de efeito, criadas sempre som
muita perspicácia. Podemos surpreendê-lo sentimental: “A perfeita solidão há de
ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real.” Romântico: “Nasceu comigo
o horror de trair. Eu queria ser fiel e que todos fossem fiéis. Amar a mesma,
sempre. (...) A minha mais doce utopia era morrer como ser amado.” Reacionário
(e atual): “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e
fulminante do idiota.” “Canalha” e “pulha” são palavras recorrentes, de sua
preferência, quase uma marca. Narra inclusive o episódio em que escutou pela primeira
vez a palavra “canalha”. Não apenas a palavra “canalha”, mas os próprios
“canalhas” o fascinavam. E já que o assunto é memória, também tenho as minhas.
Lembro que na minha cidade também havia um menino precoce que cedo logo ganhou
o apelido de “Canalha”. Ele fazia pose de canalha, e quando tentava disfarçar a
alcunha, bancar o homem sério, mais canalha se tornava. Ainda vou descobrir
quem batizou o Canalha de canalha. E fico a me perguntar: Já existia em Tianguá
algum leitor de Nelson Rodrigues?