por Carlos Vazconcelos
Um clássico sempre nos surpreende. Se não revela as grandes verdades que almejamos, enleva-nos com pequenos achados. Na busca de abrir caminho através da densa barreira dos Livros Que Não Li ou dos Livros Que, Se Eu Tivesse Mais Vidas Para Viver, Certamente Leria de Boa Vontade (como sugere Italo Calvino), abri esta semana as páginas de A Arte Poética de Horácio. Na realidade, uma epístola escrita aos Pisões com o intuito de prestar aconselhamentos quanto ao ato criador. Com o tempo consolidou-se, do mesmo modo que a outra Arte Poética, a de Aristóteles, como interessante manual de estética aplicada à literatura e, particularmente, ao teatro.
A Poética de Horácio é o manifesto máximo do classicismo contra qualquer tipo de vanguarda, pois para ele liberdade é exceção, não a regra. Numa época em que se busca um vanguardismo a qualquer custo, um desejo convulsivo de inovar a arte e seus mecanismos, mesmo que o conteúdo soe inválido e a poética estéril, Horácio, como um bom clássico, é atualíssimo quando adverte: “Vós, que escreveis, tornai a matéria igual às vossas forças e pesai longamente o que vossos ombros se recusam a carregar”; ou quando indaga: “Começou-se a moldar uma ânfora, por que ao girar da roda saiu um pote?”
Muitos artistas hoje não compreenderam as lições de seus mestres. Buscam a ruptura, mas não percebem que em arte toda transgressão deve ser passageira, isto é, durar enquanto transgressão. Quebrar paradigmas às vezes é essencial, mas o ato de ruptura não pode, por si só, virar estética. Quando isso acontece, os transgressores provam do próprio feitiço. Concordo com o escritor e crítico Affonso Romano de Sant’Anna, quando afirma que “a melhor homenagem que podemos fazer aos mestres contestadores de ontem, é contestá-los hoje.” Não foi à toa que Marcel Duchamp (charlatão e gozador, para uns; rei da vanguarda artística, para outros) afirmou: “Joguei o urinol na cara deles como um desafio e agora eles o admiram como um objeto de arte.” Não se deve empurrar gato por lebre. O ato de ruptura não se dilui em estética, apenas a provoca. A Poética de Horácio amolda-se perfeitamente à sexta definição de Calvino: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.”
Com base no dualismo de Platão (esteticismo/eticismo), Horácio pregava que a arte tinha duas finalidades: agradar e educar. “Não basta que os poemas sejam belos, é preciso que sejam doces”, afirma ele. Para o esteticismo a função da arte é ser arte; para o eticismo a função da arte é ser útil. Nesse ponto, dissocia-se do pensamento de Aristóteles. O autor da outra Poética valoriza a arte como imitação e aceita que o feio na natureza pode agradar na arte, como por exemplo um cadáver bem pintado. Na poética de Horácio, há um permanente paralelo entre a pintura e a literatura, e ele inclusive admite que pintores e poetas têm o poder de ousar, mas a razão deve dominar a fantasia e o sentimento. O artista que pretende variar com prodígios um tema uno, termina por pintar delfins nas selvas e javalis nas ondas. Um poema concebido sem critérios estéticos, onde apenas o engenho participe e não a arte, pode assemelhar-se ao quadro de um pintor que quisesse ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, resultando no ridículo quadro da mulher-cavalo-ave-peixe, o que nos faz deduzir que o Surrealismo seria a estética inversamente proporcional ao classicismo de Horácio. Mais ainda: Seria sua inimiga mortal. Não que condenasse o fantástico, onde se misturam coisas falsas e coisas verdadeiras, mas a falta de coerência.
Dispensados certos radicalismos e outros aspectos que nos soam hoje como anacrônicos, há muita atualidade nas propostas do autor grego. Ele aconselha que toda obra literária seja submetida aos ouvidos de um crítico severo e depois permaneça guardada até o nono ano, e justifica: “O que não tenhas editado, te será permitido destruir. As palavras soltas não podem tornar.” Critica os poetas romanos que abandonaram as pegadas dos gregos, principalmente de Homero, criador da fórmula perfeita dos hexâmetros com que escreveu a Odisseia, e dá mais esta lição atualíssima e permanente: “Nem o Lácio seria mais potente pelo valor e pelas armas gloriosas do que por sua língua, se o trabalho lento da lima não aborrecesse a todos os nossos poetas. Vós, ó sangue de Pompílio (1), repreendei o poema que muitos dias e muitas correções não desbastaram e não burilaram por dez vezes com a unha aparada.”
No que diz respeito ao teatro, sua pretensão de “pureza” é ainda maior, pois condena o gênero que descamba em outro, como a epopeia retorcida em comédia por falta de perícia dos atores ou do autor do texto. Não lhe agradam esses dois gêneros. Prefere o drama satírico, espécie de moderador entre o riso e o siso. Consagrado como poeta do amor e da paz, rejeitava o espírito guerreiro do romano, condenando por consequência cenas violentas no teatro, boas para serem contadas, jamais para serem representadas, como por exemplo Medeia matando os filhos. Em outras palavras, o classicismo nada sabe do naturalismo. É tal o radicalismo de Homero que ele considerava impraticável jovens representarem papéis de velhos ou vice-versa. Podemos então concluir que a Poética de Horácio amolda-se também ao preceito número 14, de Calvino: “É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.”
Por fim, comungo ainda com Calvino para enfatizar a importância de se ler propriamente as obras: “A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário” e a Todorov: “Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos. O Ensino Médio, que não se dirige aos especialistas em literatura, mas a todos, não pode ter o mesmo alvo; o que se destina a todos é a literatura, não os estudos literários; é preciso então ensinar aquela e não estes últimos.”
Afinal, Horácio é clássico por que é atual ou é atual por que é clássico? Ora, a questão é tão imperativa quanto ler esta resenha e não ler o livro do qual ela trata. Portanto, quem deseja compreender A Poética de Horácio, deve ir imediatamente à livraria ou a biblioteca, e não se contentar com apreciações como esta.
[1] Os Pisões, a quem a carta de Horácio se destina, pretendiam-se descendentes de Numa Pompílio, segundo rei de Roma.
Bibliografia
CALVINO, Italo. Se um viajante numa manhã de inverno. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Planeta De Agostini, 2003.
__________. Por que ler os clássicos. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007.
SANT’ANNA. Affonso Romano. Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2003.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 2. ed. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
TRINGALE, Dante. A arte poética de Horácio. São Paulo: Musa Editora, 1993.
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